No mês de junho de 2024 a equipe da Pesquisa Cartografia do Orçamento Participativo foi convidada pelo projeto “Territórios do Petróleo: Royalties e Vigília Cidadã na Bacia de Campos” para participar de uma formação junto à populações atingidas pela indústria do petróleo naquela região. Em uma parceria entre IBAMA, Petrobras e Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), o projeto de educação ambiental traz como objetivo central “a promoção da discussão pública dos processos de distribuição e aplicação dos recursos financeiros provenientes das participações governamentais (royalties e participações especiais)”¹.
O público alvo do projeto são os grupos sociais mais vulneráveis aos impactos das atividades realizadas pela indústria do petróleo na Bacia de Campos, incluindo membros de associações de moradores urbano-periféricos, de comunidades quilombolas, trabalhadores rurais e assentados e membros de associações e colônias de pescadores. Além desses espaços centrais, espera-se atingir, por meio das ações educativas, representantes da sociedade civil organizada que sustentam papéis ativos no âmbito produtivo e social dos territórios, como representantes de associações comerciais, cooperativas, sindicatos e demais agremiações representativas da sociedade civil. Ao todo, dez municípios são alcançados pelo projeto: Arraial do Cabo, Cabo Frio, Armação dos Búzios, Casimiro de Abreu, Rio das Ostras, Macaé, Carapebus, Quissamã, Campos dos Goytacazes e São João da Barra.
Em cada município é formado um Núcleo de Vigília Cidadã (NVC) que, contando com até vinte membros, se reúne periodicamente para debater questões relacionadas às rendas petrolíferas e aos impactos socioambientais percebidos em seus territórios. Esses núcleos foram agrupados de acordo com suas principais características no que tange o desenvolvimento de trabalho coletivo formando três perfis com os quais vêm sendo realizadas diversas atividades de formação. São eles: Perfil Coletivo (NVCs de Arraial do Cabo, Casimiro de Abreu e Campos dos Goytacazes), Perfil Colaborativo (NVCs de Cabo Frio, Carapebus, Quissamã e São João da Barra) e Perfil Associativo (NVCs de Rio das Ostras, Armação de Búzios e Macaé).
Após dez anos de Territórios de Petróleo, em virtude do descomissionamento da plataforma de petróleo legalmente responsabilizada pela viabilização do projeto, seu trabalho será interrompido a partir do mês de agosto deste ano. Entretanto, sabe-se que o descomissionamento não garante o fim dos impactos às populações atingidas, ao contrário, seu processo também é visto como um vetor de questões que atingirão aqueles territórios. Sendo assim, para garantir o seguimento das lutas, os membros dos dez NVCs se uniram visando a formação da Associação Regional Núcleo de Vigília Cidadã, que já tem seu processo de formalização bastante adiantado. Junto a isso, estão sendo buscados caminhos que permitam a continuidade da parceria entre a Associação e a UENF.
Foi nesse contexto que recebemos o convite para participar da última formação oferecida aos NVCs, cujo debate se construiria em torno da temática do Orçamento Participativo. A escolha desse assunto foi estabelecida pelos membros do grupo e se deu após a realização de outro momento firmado no debate sobre o orçamento público municipal.
Muito entusiasmados com a possibilidade de uma atuação em um campo inédito para o nosso projeto — o da formação popular — e em um ambiente distante da academia (apesar da parceria com a UENF), nos preparamos junto à equipe técnica do projeto Territórios de Petróleo para dois finais de semana de processos de ensino-aprendizagem, balizados pela troca de experiências. Os agrupamentos dos NVCs são bastante diversos em termos de gênero, raça, formação e ocupação profissional, tanto entre os diferentes perfis, quanto dentro dos próprios núcleos. Assim, para cada perfil de NVCs foram separados uma noite e um dia inteiro de atividades, para os quais preparamos diferentes espaços de debate, contando com momentos de apresentação dialogada intercalados à realização de dinâmicas. Buscava-se estimular ao máximo a participação de todos os envolvidos, potencializando os processos de ensino-aprendizagem. Assim, estabeleceu-se como base o seguinte cronograma:
PRIMEIRO DIA | Início da atividade – 18h30min | |||
Objetivo | Duração | Nome da Metodologia | Responsáveis |
Realizar a palavra de abertura e dar início ao evento. | 15min | Abertura do Evento | Coordenação |
Construir coletivamente um acordo de convivência para melhor organização do evento. | 15min | Acordo de Convivência | Equipe Pedagógica e membros do NVC |
Realizar apresentação dos palestrantes convidados, do respectivo Projeto e das possibilidades de uso de dispositivos como ferramentas para ações de associações. | 40min | Apresentação do Projeto “Cartografia da Percepção Popular do Orçamento Participativo em Belo Horizonte” | Maíra Ramirez e Henrique Porto |
Fomentar o interesse em torno do tema sobre Orçamento Participativo e a materialidade do processo. | 1h | Cine Debate com trecho do documentário “Centros Culturais e Orçamento Participativo” | Maíra Ramirez e Henrique Porto |
Realizar informes e nivelamentos para organização do evento. | 10min | Informes gerais | Coordenação |
21h – Término das atividades do dia |
SEGUNDO DIA | Início da atividade – 9h | |||
Receber, acolher e nivelar os participantes sobre a programação do dia. | 10min | Abertura do dia | Coordenação |
Promover discussões sobre diferentes modelos e níveis de participação, a partir das experiências dos NVCs | 1h30min | Dinâmica: “Escada da Participação” | Maíra Ramirez e Henrique Porto |
10h40 – 10h50min – Intervalo | |||
Articular as discussões promovidas pela “Escada da Participação” com possibilidades de participação no orçamento público | 30min | Participação e orçamento | Maíra Ramirez e Henrique Porto |
Informar sobre o que é e como ocorre um Orçamento Participativo, apresentando as experiências de Belo Horizonte e Porto Alegre | 1h | Orçamento Participativo: uma importante ferramenta de participação no orçamento | Maíra Ramirez e Henrique Porto |
12h30min – 14h – Almoço | |||
Apresentar diferentes possibilidades de OP a partir da criação de cinco categorias criadas pelos palestrantes | 2h30 | Diferentes modelos de OP | Maíra Ramirez e Henrique Porto |
16h30min – 16h40min – Intervalo | |||
Possibilitar a aplicação das informações apresentadas às realidades e principais demandas locais identificadas por cada NVC. | 1h30min | Aproximação com os territórios e dinâmica “Crie seu OP” | Maíra Ramirez e Henrique Porto |
Avaliar as atividades e os serviços envolvidos para a realização do evento. | 10min | Avaliação | Equipe Pedagógica |
Realizar as considerações finais, agradecimentos e a finalização do evento. | 20min | Considerações finais | Coordenação PEA-TP |
18h – Encerramento do evento |
Esse cronograma foi o balizador para a realização da formação com cada um dos Perfis supracitados. Entretanto, a despeito da existência de uma base semelhante, as diferenças entre os perfis, os ajustes necessários e os caminhos percorridos pelos debates e dinâmicas, fizeram com que cada uma das experiências se tornasse única. No primeiro fim de semana (de 21 a 22 de junho) a formação contou com a participação do perfil Coletivo; já o segundo fim de semana (de 28 a 30 de junho) foi dividido em dois momentos contando, respectivamente, com a presença dos perfis Associativo e Colaborativo.
As partes destinadas à exposição teórica, conforme mencionado, foram desenhadas a partir de uma lógica dialogada que contava permanentemente com a troca de informações e experiências entre todos os envolvidos. Quando, por exemplo, foram explorados alguns espaços de participação, como conselhos e conferências, muitos dos membros dos NVCs trouxeram suas vivências, incômodos e questionamentos.
Num espaço bastante aberto ao diálogo, propôs-se a realização de um cine debate com apresentação de um fragmento do documentário “Centros Culturais e Orçamento Participativo”. Trata-se dos primeiros 23 minutos do filme que abordam a criação do OP de Belo Horizonte, explicando seu funcionamento e trazendo elementos centrais como a inversão de prioridades, a formação cidadã e a rede de solidariedade formada a partir das caravanas de prioridade. Realizada ainda no primeiro dia de formação, essa atividade tinha como finalidade introduzir o debate a respeito dos OPs, bem como fomentar o interesse para o segundo dia. De fato, o propósito foi alcançado e, mais do que isso, foi possível observar um grande encantamento das pessoas com a vivência belorizontina que pode ser resumida pelas palavras da professora Silvia Alicia Martínez (UENF) que descreveu o OP de BH como “uma utopia possível”.
Seguindo semelhante linha, mas com ainda mais interatividade, as dinâmicas contaram uma proposta lúdica e trouxeram também, reflexões bastante potentes a respeito dos processos de participação. A “Escada da Participação” partia do pensamento de Sherry Arnstein² e da proposição de uma escala participativa que varia de processos onde não há participação até aqueles em que de fato existe uma distribuição de poder. O objetivo era que os envolvidos questionassem as dinâmicas e formatos dos espaços de participação nos quais se inserem. Quem se voluntariasse a participar da dinâmica, deveria descrever uma ou mais experiências, debatendo-se coletivamente em qual degrau da escada ela se encontrava.
Os resultados desse processo foram bastante variados, mas pode-se perceber que muitos dos espaços de participação não se consolidam em determinados degraus da escada, variando em relação ao tempo e ao tema debatido. Observou-se, assim, a escada como um referencial que deve ser utilizado de forma flexível e não determinista, agindo como um dispositivo de debate e não como um espaço de consolidação de respostas.
Por sua vez, a dinâmica “Crie seu OP” também trouxe diferentes desdobramentos na realização com cada um dos perfis. A proposta era que, mediante a criação de algumas categorias de Orçamentos Participativos presentes no mundo e apresentação de exemplos, cada um dos NVCs se reunisse e construísse um modelo de OP de acordo com as demandas de seus territórios. Os grupos deveriam, ainda, pensar em formas de viabilizar a proposta e construção deste OP junto ao poder público.
Essa dinâmica apresentou vários desdobramentos muito interessantes e, até mesmo, surpreendentes, como a proposta de criação de uma legislação nacional para o OP, a formação de um OP regional a partir da Associação Regional Núcleos de Vigília Cidadã, a criação de uma legislação municipal que determina-se a destinação de 2% dos royalties de petróleo para o OP, uma maioria de OPs voltados ao engajamento cívico e não à radicalização democrática e, até mesmo, a presença de um OP de caráter tecnocrático³. Além disso, observa-se uma ampla maioria de OPs temáticos e não territoriais. Destaca-se, ainda, uma unanimidade pela escolha de um modelo híbrido de participação.
Assim, marcada por processos de intensa troca e aprendizagem, podemos descrever as atividades realizadas junto ao projeto Territórios de Petróleo como uma oportunidade única vivenciada por nosso grupo, sendo totalmente gratos pelo convite e por tudo que vivemos nesses dois finais de semana. A parceria entre os grupos tende a seguir ativa e nos colocamos à disposição da Associação Regional Núcleo de Vigília Cidadã, para possíveis consultorias a respeito do OP, auxílios casa haja interesse de implementação do instrumento, bem como quaisquer outras demandas que estejam ao nosso alcance.
¹ Informações retiradas do site do projeto Territórios do Petróleo. Disponível em: https://territoriosdopetroleo.eco.br/index.php/apresentacao/. Acesso em: 08 de julho de 2024.
² ARNSTEIN, Sherry R. A ladder of citizen participation. Journal of the American Institute of planners, v. 35, n. 4, p. 216-224, 1969.
³ Os conceitos de radicalização democrática”, “engajamento cívico” e “OP tecnocrático” se baseiam na análise proposta por Cabannes e Lipietz (2018).CABANNES, Yves; LIPIETZ, Barbara. Revisiting the democratic promise of participatory budgeting in light of competing political, good governance and technocratic logics. Environment and Urbanization, v. 30, n. 1, p. 67-84, 2018.