OP de Kalil: orçamento participativo perde recursos e participação popular.[1]
Alexandre Kalil se reelegeu como prefeito de Belo Horizonte utilizando o OP em seus programas eleitorais, mas tem dado pouca ou quase nenhuma atenção à participação popular.
Henrique Porto, Gisela Barcellos e Natacha Rena*.
A reeleição de Kalil coloca um impasse para o campo democrático e popular em Belo Horizonte. O Orçamento Participativo (OP) – uma das maiores conquistas das administrações populares na cidade, que foi progressivamente negligenciado a partir da gestão de Márcio Lacerda (2009 – 2016), apareceu como pauta em destaque na campanha do prefeito reeleito. Em um de seus programas eleitorais, veiculado no dia 16 de Outubro de 2020, Kalil afirmou que os processos participativos do OP teriam sido apenas “festa, não era[m] obra”, e que sua gestão estaria trabalhando para zerar a fila de obras paradas escolhidas no OP.
Tendo herdado um passivo de cerca de 450 obras inconclusas, acumuladas nos anos de gestão Márcio Lacerda, Kalil optou, a partir de 2017, por não dar continuidade às assembleias do OP, “reuniões demagógicas” segundo o Prefeito.
Classificando a participação popular como uma “ferramenta política”, Kalil se esconde atrás dos méritos de sua gestão em relação à anterior, reforçando uma retórica anti-política que esteve na base de sua primeira campanha para prefeito de BH. A paralisação dos processos participativos, adotada como princípio da atual gestão, contradiz as próprias bases de funcionamento do OP enquanto política pública de sucesso e popularidade. Com malabarismos orçamentários e programáticos, a prefeitura caminha para a conclusão das obras paradas (o que definitivamente é um avanço em relação à gestão do ex-prefeito Márcio Lacerda). Porém, sem a menor possibilidade de controle social e negociação por parte da população envolvida, a política torna-se cada vez mais centrada no prefeito e no seu secretariado. Assim, o OP de Kalil parece seguir aquilo que vem se consolidando como tendência na política atual brasileira: fragmentação ou fim da participação popular e crescente impossibilidade de diálogo e construção social coletiva.
O OP de Kalil
Os números mostrados no programa eleitoral do prefeito escondem uma dura realidade.
Ao final de 2020, foram votadas na Câmara Municipal (CMBH): a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a Lei Orçamentária Anual (LOA) e a revisão anual do Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) para 2021 (projetos de Lei nº 976/2020, 1.055/2020 e 1.054/2020) no chamado “ciclo orçamentário”. Uma série de emendas que visavam a retomada e o aprimoramento do OP foram apresentadas aos projetos de lei, porém, com o fim da tramitação, consolidou-se a rejeição de todas. Fossem emendas de valor – que visavam aumentar a dotação orçamentária do OP – ou fossem diretrizes – em prol da retomada e aprimoramento dos processos participativos, maior transparência, dentre outras medidas – todas as propostas envolvendo OP foram rejeitadas. As emendas eram, em parte, provenientes de sugestões populares, e em parte, de autoria dos então vereadores Pedro Patrus (PT) e Arnaldo Godoy (PT). Em todos os casos, enfrentaram uma forte resistência do bloco que configurava a base do prefeito na Câmara. A ampla maioria de vereadores governistas, liderada pelo vereador Léo Burguês (PSL), adotou como diretriz o congelamento do OP por parte da prefeitura utilizando a narrativa da “fila de obras paradas” como justificativa para vetar qualquer iniciativa que visasse aprimorar ou mesmo ampliar recursos para o OP.
A rejeição das emendas na Câmara Municipal de Belo Horizonte indica o prolongamento de um período de dificuldades para o campo da participação popular sob os mandatos de Kalil. O resultado das eleições legislativas – apesar de significativas conquistas, como a ampliação da representação negra e feminina – formou uma nova câmara que não sinaliza nenhuma possibilidade de avanços nesse sentido. Além da não reeleição dos vereadores Pedro Patrus (PT), Arnaldo Godoy (PT) e Gilson Reis (PCdoB) – que vinham sendo os parlamentares mais atuantes na defesa da participação popular -, o resultado das urnas não permitiu aumentar as poucas vagas (cinco cadeiras) da esquerda belorizontina[2], número que tem se mostrado insuficiente para fazer frente à agenda do prefeito.
Os últimos anos – de Lacerda a Kalil
A relação de Alexandre Kalil com o OP nos últimos quatro anos tem sido bastante ambígua. O comprometimento em zerar a fila de obras paradas sinaliza um avanço em relação à gestão anterior – o que por si só não deve ser enxergado como um grande mérito, dado o absoluto descaso do ex-prefeito (Lacerda) em relação ao OP. Em seus oito anos de mandato, o ex-prefeito Márcio Lacerda manteve o acelerado ritmo de aprovação de obras do OP, iniciado nas administrações petistas. Porém, com uma destinação de recursos cada vez menor a partir de 2009, o ritmo de execução destas mesmas obras tornou-se cada vez mais lento, ao passo que, em 2016, chegou-se ao número de 450 obras inconclusas.
Mesmo com o comprometimento em concluir as obras, a gestão Kalil tem destinado um orçamento baixíssimo para o OP. Dados da prefeitura de junho de 2020 indicam que a gestão Kalil foi a que destinou menor percentual de recursos para o OP desde 2002 (ano em que se inicia a base de dados) em relação ao orçamento municipal. Tanto os valores aprovados para o OP, quanto os valores empenhados – ou seja, aquilo que realmente foi aplicado na execução das obras – destacam-se na gestão Kalil como os mais baixos da série histórica (ver gráfico 1), não superando os 2% da despesa capital do município, no caso do valor empenhado.
Para concluir as 124 obras em seu primeiro mandato, assim como as demais 326 que prometeu cumprir nos próximos quatro anos, a gestão Kalil adotou a estratégia do chamado “escopo otimizado”. Desde 2017, a prefeitura optou por excluir alguns itens do escopo das obras escolhidas no OP – como, por exemplo, desapropriações – a fim de tornar as execuções mais baratas. A estratégia tem garantido a conclusão de uma parte significativa das obras paradas, porém, a alteração do conteúdo dos escopos tem causado bastante frustração por parte da população que participou dos processos do OP.
A exclusão de desapropriações, por exemplo, tem gerado algumas anomalias, como é o caso de uma praça no bairro Primeiro de Maio, na regional Norte de BH. A população da região, historicamente organizada em torno de movimentos de luta vinculados à Igreja Católica, mobilizou-se no OP de 2013/2014 para conquistar a reforma da praça da Igreja de Santo Antônio. A praça é um dos poucos locais de lazer da região e é também ponto tradicional para realização de eventos culturais. Sua reforma foi aprovada no OP com valor de R$1,946 milhões. Passados oito anos, a obra finalmente foi iniciada, porém, entrou para a lista do “escopo otimizado” da prefeitura. Agora, o novo projeto foi licitado em conjunto com a reforma de outra praça, no valor total de R$ 777.899,00 para as duas obras. Com isso, exclui-se do escopo a desapropriação de um lote particular situado entre a praça e a Igreja cuja inclusão como espaço público fora um dos pontos centrais para a demanda comunitária no processo participativo . A situação tem dividido os moradores entre aqueles que exigem que a obra seja feita conforme o projeto aprovado no OP e aqueles que preferem a execução o mais rápido possível, dado o longo período de espera pela construção do projeto da praça.
Maria das Graças Nascimento, liderança comunitária e delegada da COMFORÇA[3] eleita para o acompanhamento da obra, relata sua frustração com o processo:
Muitas incertezas pairam sobre a estratégia do chamado “escopo otimizado”. Antes que a postura fosse implementada, a prefeitura anunciou, em uma audiência pública, em abril de 2017, que estaria autorizada pela Câmara Municipal a captar empréstimos de 450 milhões de dólares no mercado financeiro para a execução das obras do OP. Os recursos representariam um valor maior do que 20 vezes aquilo que foi investido pela prefeitura no OP entre janeiro de 2017 e junho de 2020. Desde então, a prefeitura não mencionou publicamente mais os empréstimos.
Ao que tudo indica, a gestão Kalil tem utilizado o argumento da falta de recursos e da “fila de obras” para moldar o OP à sua própria conveniência. Se na Câmara Municipal a “fila de obras” tem sido o argumento responsável por impedir aprimoramentos no OP, nos territórios, tem-se pressionado os cidadãos a aprovarem os projetos com escopo reduzido (ou “otimizado”) sob o temor de que alguma revisão os leve de volta para o “fim da fila”, o que, com a atual baixíssima orçamentação, pode significar mais muitos anos de espera.
Aos poucos, a falta de prioridade política tira do OP as suas virtudes participativas e redistributivas. A prefeitura de Kalil enxerga a participação popular como um problema a ser resolvido com o mínimo de esforço e recursos possível.
Ainda assim é preciso reconhecer algumas virtudes da gestão Kalil. Enquanto para o OP a postura da prefeitura não foi favorável para o campo democrático e popular, no âmbito da Política Urbana lograram-se algumas conquistas, como a aprovação do novo Plano Diretor. Kalil tem realizado “concessões” em algumas agendas importantes para a esquerda, abrindo maior espaço de diálogo com movimentos sociais e apoiando algumas pautas muito específicas. Porém, nada disso ocorre sem certo cálculo político, que tem deixado o OP, e tantas outras políticas públicas estruturantes, de fora da atenção do executivo municipal.
Por isso, acredita-se que somente a mobilização social por mais participação popular irá nos devolver a descentralização das políticas públicas junto a processos de participação real da sociedade, com democracia e construção coletiva. Kalil tem se mostrado um prefeito que, apesar da grande centralização, tende a mediar interesses. Nesse sentido, a situação do OP, bem como o próprio resultado das eleições municipais em Belo Horizonte, mostram que a voz da esquerda nessa disputa tem sido difusa e pouco expressiva. Tal situação ficou evidente durante o processo eleitoral, quando o OP foi severamente criticado por parte da esquerda e defendido – em termos vagos – por parte da direita.
Se o campo popular quer mais democracia na política urbana, é preciso retomar o OP como pauta central das mobilizações na cidade, a partir dos mandatos parlamentares, das associações, das universidades e dos movimentos sociais. Somente a mobilização social irá pressionar de fato a prefeitura a abrir espaço para a participação no orçamento público. A disputa pelo OP representa, não só a luta pela priorização das periferias no planejamento e na gestão da cidade, mas, também, a reconstrução de uma forma direta e concreta para discutir políticas públicas, colocando o campo democrático popular de volta à mesa de discussões sobre o orçamento municipal. A retomada plena do OP deve significar o retorno ao diálogo e à construção democrática participativa em detrimento da absoluta fragmentação que domina o debate político atual.
*Henrique Porto: Estudante da EA UFMG, Pesquisador do Grupo de Pesquisa Indisciplinar e bolsista da pesquisa Cartografia da Percepção do Orçamento Participativo em BH.
Gisela Barcellos: Professora da EA UFMG, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Indisciplinar, co-coordenadora da pesquisa Cartografia da Percepção do Orçamento Participativo em BH.
Natacha Rena: Professora da Escola de Arquitetura da UFMG, Líder do Grupo de Pesquisa Indisciplinar e coordenadora geral da pesquisa Cartografia da Percepção do Orçamento Participativo em BH.
[1] O Texto é parte de uma série de artigos sobre o Orçamento Participativo na atual conjuntura política em Belo Horizonte. O primeiro texto publicado sobre o tema está disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2020/11/03/artigo-eleicoes-e-hora-de-resgatar-o-orcamento-participativo
[2] Vereadoras Macaé Evaristo (PT), Sônia Lansky da Coletiva (PT), Duda Salabert (PDT), Bella Gonçalves (PSOL) e Iza Lourença (PSOL).
[3] Comissão Municipal de Acompanhamento e Fiscalização da Execução do Orçamento Participativo.