Artigo e entrevistas | Primeira rodada do OP 24/25 em Belo Horizonte

O dia 20 de março de 2024 marcou a reabertura oficial do Orçamento Participativo em Belo Horizonte, que, por sete anos, esteve paralisado, ressurgindo às vésperas das eleições municipais com a promessa de atender as demandas das populações mais vulneráveis. A cerimônia de abertura aconteceu no auditório JK da sede da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, e contou com a presença de lideranças comunitárias das nove regionais que formam a capital, além dos agentes públicos envolvidos no processo, figuras políticas e representantes da COMFORÇA.

O Orçamento Participativo surgiu em Belo Horizonte no início da década de 1990, sob a gestão do prefeito Patrus Ananias (PT), tornando a cidade uma das pioneiras na América Latina no que tange a adoção do mecanismo. O projeto foi responsável pelo desenvolvimento de mais de mil e seiscentas obras públicas — das quais, cerca de mil e quatrocentas foram finalizadas até 2023 —, e ganhou bastante popularidade ao longo do tempo. O instrumento perdeu força, contudo, a partir da gestão de Marcio Lacerda (PSB) que se iniciou em 2009, e diminuiu consideravelmente o valor orçamentário disponível para a execução dos empreendimentos escolhidos e, após o acúmulo de mais de quatrocentas obras inacabadas, foi descontinuado por Alexandre Kalil (PSD), que governou como prefeito entre 2017 e 2021. Kalil chegou a classificar o OP como uma “ferramenta política”, argumentando que as rodadas de participação seriam “reuniões demagógicas” e que deveria ser priorizada a execução do passivo de obras. Contudo, mesmo com as rodadas paralisadas, a execução das obras em sua gestão seguiu um ritmo lento, uma vez que não houve um incremento significativo de recursos para esse fim.

Diante desse quadro de negligenciamento do OP, desde 2017, pôde-se observar alguns esforços institucionais para a volta do instrumento na capital mineira, a partir da proposição  de emendas na Câmara Municipal (CMBH) que não avançaram significativamente nos primeiros anos da gestão Kalil. Em dezembro de 2022, contudo, foi aprovada a emenda 35 à Lei Orgânica do Município, que determinou o investimento de 0,2%, da Receita Corrente Líquida do Município para atender os empreendimentos aprovados no Orçamento Participativo a partir de 2024, além da obrigatoriedade de execução de todas obras conquistadas nas rodadas do instrumento. A emenda é de autoria do vereador Wilsinho da Tabu (Podemos), que esteve vinculado ao OP durante a gestão Lacerda, e incide sobre parte dos recursos destinados às emendas impositivas dos vereadores da CMBH. É importante ressaltar que muitos vereadores têm boas articulações com lideranças comunitárias envolvidas com o OP, o que pode ter influenciado o apoio da Câmara à retomada do instrumento, que foi aprovada por unanimidade.

Isso permitiu que a discussão do OP ganhasse força na cidade novamente sem, contudo, que os rumos dessa política estivessem claros. A emenda aprovada determina somente uma parcela restrita dos recursos municipais (cerca de R$30 milhões, considerando os valores referentes a 2022) previstos anualmente para a execução das obras. Contudo, a lei não especifica a realização de rodadas, os meios de priorização das demandas do passivo e/ou novas demandas e nem mesmo um prazo para execução dos empreendimentos, de forma que tenha se deixado ainda grandes margens de manobra para a gestão municipal. 

Ainda assim, em decorrência da aprovação da emenda, o prefeito Fuad Noman (PSD) — que substituiu Kalil após o prefeito se afastar do cargo para disputar as eleições estaduais, em 2022 — anunciou a volta do Orçamento Participativo, em seu último ano de gestão (2024). Na cerimônia de abertura da política, Fuad fez questão de ressaltar o compromisso do seu governo em atender as demandas da população mais vulnerável de Belo Horizonte, sobretudo no que se refere à infraestrutura. No discurso, o prefeito reconheceu as mais de cem obras do OP que não foram concluídas nos últimos 7 anos, mas buscou tranquilizar o público presente ao afirmar que elas fazem parte das prioridades do seu mandato. Na ocasião, os detalhes do funcionamento do processo foram apresentados por Verônica Sales, gerente de acompanhamento das instâncias de Participação Popular em Belo Horizonte, que fez uma breve explicação a respeito do funcionamento do instrumento, convocando a população a participar da primeira rodada do OP, que ocorreria em todas as regionais e, nas quais, os procedimentos seriam explicados de forma mais aprofundada. Uma particularidade da edição se trata do fato de que ela atenderá apenas favelas e conjuntos habitacionais (ZEIS), e loteamentos, cooperativas e ocupações organizadas (AEIS 2) que, somadas, representam os territórios de moradia de cerca de um quinto da população belo-horizontina. 

Com o objetivo de acompanhar a retomada do instrumento, o Projeto Cartografia do Orçamento Participativo (UFMG) realizou no dia 16 de abril de 2024, uma entrevista com Verônica Sales, que apresentou seu ponto de vista a respeito do histórico de conquistas e de disputas do OP na capital mineira, além de expor as novidades que compõe a proposta atual. Inicialmente, Verônica explicou que a volta do Orçamento Participativo aconteceu, para além da lei aprovada, por uma demanda da Urbel (Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte) pela viabilização de novas obras que atendessem as vilas e favelas.

A entrevistada apontou que a Urbel já deu início à execução de todas as obras em vilas e favelas escolhidas em edições passadas do Orçamento Participativo. Ademais, Verônica ressaltou que a companhia não dispõe de recursos correntes para a realização de obras nesses assentamentos, de forma que esse tipo de empreendimento dependa, em grande medida, dos recursos do OP. Portanto, as novas rodadas do Orçamento Participativo seriam essenciais para renovar o “cardápio” de obras que atendam às novas demandas nas AEIS e ZEIS. 

Verônica também explicou como ocorreu a escolha de incluir como participantes da nova edição as AEIS 2, que contemplam as Ocupações Urbanas realizadas nos últimos anos na cidade, e que, em muitos casos, não contam com sua situação fundiária regularizada, além de terem grande carência de infraestruturas básicas. A entrevistada comenta que o Orçamento Participativo funciona como uma “porta de entrada” para que as comunidades periféricas apresentem suas demandas e avancem na regularização de seus locais de moradia:

Na gestão do Kalil, o “pessoal” já estava discutindo isso quanto ao Plano Diretor, de reconhecer 118 áreas de interesse especial […]. Criou-se, então, a oportunidade nessa rodada do OP de incluirmos essas AEIS. Nós só íamos trabalhar [com] as ZEIS, mas já que nós buscamos atender as vulnerabilidades, vamos trazer as AEIS 2, [já que o Orçamento Participativo] é uma porta de entrada [para seus moradores]. Então, a gente organizou a rodada do OP [nessas áreas].  […] [Nas edições passadas,] nós trabalhávamos com [uma divisão em] 40 territórios […] e não tinha sentido [distribuir em] 40 territórios com os bairros fora deles, ficaria desorganizado. […] [Por isso,] nós reaproximamos os territórios das ZEIS e AEIS [e] fizemos 16 grandes encontros. As diretrizes desse OP foram [feitas] exclusivamente para os assentamentos, e buscamos não sair do foco de infraestrutura, porque tem muito lugar que não tem o básico. Nós “voltamos lá atrás”, para 1993 [em alusão ao ano em que o OP teve início]. Então nós vamos [nos comprometer a] fazer praças para quem não tem nem rua? Vamos priorizar a infraestrutura.

O valor orçamentário da edição 2024/2025 foi esclarecido: 0,2% da Receita Corrente Líquida da cidade referente aos anos de 2025 e 2026, totalizando cerca de R$75 milhões. Esse valor será distribuído nas ZEIS e AEIS 2 das nove regionais, que foram divididas em dezesseis territórios, sendo dois por regional, exceto para as Regionais Centro-Sul e Pampulha, que ficaram com um território cada. A divisão da quantia se deu de duas formas: metade do valor foi distribuído igualmente para as regionais, e metade foi dividido através de uma ponderação pelo tamanho da população das AEIS 2 e ZEIS de cada regional. 

A prefeitura determinou que cada uma das regionais teria a possibilidade de escolher até dez obras a serem desenvolvidas, totalizando um máximo de 90 empreendimentos. Caso o recurso fosse distribuído igualmente por cada um deles, chegaria-se a um valor de cerca de R$800 mil por obra, o que viabilizaria apenas intervenções de pequeno porte. O novo orçamento representa uma quantia muito menor quando comparado às últimas edições do OP em Belo Horizonte (que chegaram a discutir mais de R$400 milhões, considerando-se a correção monetária). Dessa forma, a limitação do recurso disponibilizado impede o acolhimento de demandas de grande porte, como a implementação de equipamentos públicos (Centros de Saúde, CRAS, Creches, etc.), bem como o atendimento de toda a cidade, o que corrobora a limitação dessa rodada às áreas de maior vulnerabilidade. 

Verônica Sales explica, ainda, que o valor estipulado é garantido pela prefeitura para a execução das obras escolhidas na edição 2024/2025, mesmo que exista um passivo de edições anteriores. O início do processo de licitação e execução das novas obras, contudo, não deve ocorrer até dezembro (quando se encerram os processos participativos). Isso faz com que a prioridade, no momento, seja de levar adiante as obras do passivo e, assim que as novas obras forem escolhidas e contratadas, elas passam a usar o recurso da “lei impositiva” (Emenda 35 à Lei Orgânica Municipal). A entrevistada explica:

O que o prefeito disse [nas aberturas] é o seguinte: ‘eu vou aportar o recurso que precisar, porque […] ao final do ano a gente vai saber quais são as obras [escolhidas] e no ano seguinte, a Urbel vai começar a contratar os processos, e são no mínimo seis meses para contratar a licitação e o projeto’. Então só vai começar a gastar esse dinheiro no segundo semestre [de 2025] e todo ano vai ter o recurso. Estima-se 75 milhões para essa rodada, e a gente tem que priorizar o passivo, a nossa garantia é que todo ano nós vamos ter em torno de 35, 40 milhões para serem gastos. E se for pouco, vamos ter que aportar mais recursos, porque temos que pagar o passivo e temos que começar as obras novas. […] [Isso] deixa organizado para a próxima gestão caminhar para utilizar esse dinheiro, que só pode ser gasto com a Urbel.

O projeto Cartografia do Orçamento Participativo também entrevistou Robson da Costa, morador da Pedreira Prado Lopes e presidente da associação comunitária, cultural e jornalística “Fala Pedreira”. Robson foi participante assíduo de todas as edições do OP, desde 1993, representando a Pedreira e mobilizando recursos para essa comunidade. Ao refletir sobre o novo orçamento previsto em lei, o entrevistado comenta:

É positivo ter se transformado em uma lei, […] parece que uma parte do orçamento municipal vai ser destinada para as obras de Orçamento Participativo. Isso é muito bom, a gente falava isso há 30 anos atrás, que era necessário que […] isso acontecesse. Só que, a porcentagem, a gente entende que ela é muito pequena, ela está bem aquém da realidade. Se pegarmos essa porcentagem do que é hoje e [compararmos com] o que era na época em que [o OP] parou, há 10 anos atrás, por exemplo, havia muito mais recurso investido na questão das obras.

Robson da Costa também reflete sobre a dificuldade de conseguir mobilizar a população nas comunidades para as rodadas do OP:

A gente está falando de uma coisa que começou a acontecer há 30 anos atrás. Então, muitos dos nossos já foram. E a juventude, infelizmente, não assumiu essas vagas que ficaram e não tem muito compromisso […] com a comunidade, com a coisa coletiva. É um processo que precisa ser retomado mesmo, dentro das próprias comunidades. Vai ser um processo lento e penoso, com certeza, porque a realidade de hoje não é a realidade de 30 anos atrás. Hoje em dia, é mais complicado fazer mobilização, é mais complicado envolver as pessoas, envolver a juventude. […]

Eu não sei se vai acontecer, se a coisa vai decolar como era há 20, 30 anos atrás, na nossa época. Nós chegamos a fazer plenárias e assembleias de Orçamento Participativo, com duas mil pessoas disputando as obras e indo mesmo para a disputa, para os argumentos. [Era] uma questão bem democrática, bem bacana, porque o Orçamento Participativo sempre foi isso também, sempre foi uma escola de formação, de liderança, de […] boa política, que sempre foi praticada dentro das rodadas. […] É muita esperança que a gente tem, mas a gente sabe da dificuldade dessa retomada […]. Mas, eu entendo que é um “trabalho de formiguinha” e que é um trabalho que precisa ser retomado pelas comunidades, pelas lideranças. Porque é um meio seguro e garantido da gente conseguir mudança e transformação dentro das comunidades, a gente entende que o Orçamento Participativo é uma ferramenta eficaz de mudança e transformação na vida das pessoas mais carentes.

Ao final de cada abertura regional foram apurados os números de moradores de cada uma das vilas, favelas e assentamentos presentes na reunião, conforme cadastro realizado na chegada. Cada dez pessoas presentes garantiram o direito a uma vaga de delegado para seu território de origem — as vagas serão definidas apenas na rodada seguinte, quando escolhem-se os representantes das obras solicitadas —. Na saída, um representante dos moradores de cada território pôde retirar o Formulário de Solicitação de Demanda, que deve ser assinado por no mínimo vinte moradores e preenchido com até três solicitações, das quais, apenas uma será incorporada aos processos de deliberação (as outras duas são apresentadas como opções, caso a primeira não tenha viabilidade técnica). Esse formulário deve ser enviado no Portal de Serviços da PBH, com o auxílio de um responsável da administração regional, caso seja necessário.

A continuidade do processo ocorrerá com a realização da Segunda Rodada, prevista para o mês de Julho (sem datas divulgadas, por enquanto). Esta etapa consiste na realização de reuniões nos 16 territórios delimitados para essa edição do OP, onde serão feitas as indicações das obras para cada comunidade, bem como, eleitos os delegados que representarão as demandas nos Fóruns Regionais de Prioridades Orçamentárias (prevista para o segundo semestre), quando ocorre, de fato, o processo de deliberação. Ressalta-se que o cronograma das etapas seguintes (Vistorias, Fóruns Regionais e Municipal) ainda não está delimitado e pode vir a conflitar com as datas das eleições municipais. 

Deve-se salientar, ainda, que a retomada do OP em Belo Horizonte parte de uma situação de grandes incertezas, uma vez que ocorre apenas no último ano da atual gestão e em concomitância com o período eleitoral. Assim, permanece difícil saber se a gestão seguinte de fato se comprometerá com a realização dos empreendimentos escolhidos e com a continuidade do processo. Além disso, é relevante destacar que os recursos garantidos para essa edição são ainda insuficientes em face das demandas existentes na cidade — além de representarem valores muito inferiores àqueles investidos em edições passadas do OP —.  Ademais, acredita-se que uma retomada robusta do instrumento exigiria a realização de significativas renovações procedimentais, tendo em vista a grande defasagem dos métodos participativos adotados em comparação com outras experiências nacionais e internacionais. 

Ainda assim, sem dúvidas, a garantia legal de recursos anuais para o instrumento e a obrigatoriedade da execução das obras eleitas representam um significativo avanço em direção à retomada dessa política. Ainda que não haja, de fato, garantia de sucesso e durabilidade da iniciativa, a medida representa uma oportunidade para a mobilização das forças populares, comprometidas com um projeto democrático de cidade, para que sejam feitas novas e maiores exigências. 

¹ Fala proferida por Kalil em um programa eleitora de sua campanha, conforme relatado em matéria do jornal O Tempo. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/hotsites/eleicoes-2020/kalil-quer-zerar-fila-do-orcamento-participativo-antes-de-discutir-novas-obras-1.2400020>. 

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